100nada

Onde é que eu estava no 24 e no 25 de Abril?

O Rui Perdigão pergunta onde é que eu estava no dia 24 de Abril de 1974 enquanto muito gentilmente oferece a este tasco o prémio de Blog tão bom que até arrepia, coisa que agradeço imenso. :)

Já a minha querida Cristina Vieira, que não faz a mais pálida ideia onde estaria nesse dia, conta onde estava no dia seguinte e muda a pergunta para esse dia.

Embora eu já tenha descrito, ali mais abaixo, a sensação que me ficou para sempre desse dia, onde eu estava realmente, não contei. Conto agora, um pouco atrasado, que estamos quase em Maio.

No dia 24 de Abril de 1974 vivia numa colónia de Portugal. Em Angola, mais precisamente. Raízes por lá desde o princípio do século, mercê de dois irmãos expulsos do seminário por fazerem de diabo à noite e que foram para lá mandados para aprenderem a serem homens e etc etc. E eu vivia em Luanda, que era uma cidade cheia de avenidas largas, praias, sol, calor e tempestades lindíssimas em cima da Baía e onde se comemorava o Natal em fato de banho. No dia 24 de Abril de 1974 sabia o nome do PR, dos rios, dos caminhos de ferro, de todos os distritos da Metrópole e das províncias das colónias. Sabia que a revista Tintin saía todas as semanas e que em Portugal estava sempre adiantada uns números, muitos dos quais nunca recuperei. Era fã da Enid Blyton e escrevia códigos secretos no lado de baixo das pedras do parque ao pé de casa. Em casa, ouvia-se rádio em AM em estrangeiro e sabia de cor “no céu cinzento sob o astro mudo”. Nunca tinha dado conta, na vida, que não se pudesse falar.

No dia 25 de Abril, a meio do dia, fecharam os meninos todos numa sala do colégio. Ou algumas turmas, pelo menos, dos mais crescidos, pois não me lembro que as minhas irmãs ali estivessem também. A professora fechou as portadas das janelas e espreitava lá para fora por uma fresta. Falava-se numa revolução, mas não se podia dizer alto, eram xius por todo o lado. Depois a coisa deve ter acalmado, porque, quando me disseram que agora já se podia falar, lembro-me que foi ao portão.

E depois, não me lembro de mais nada, só dos telefonemas a perguntar se estávamos todos bem porque a guerra civil que chegou a Luanda, a morteirada, os tiros, o recolher obrigatório, as barreiras nas ruas, a busca por leite racionado e as idas para a cave todas as noites em que os tiros eram mais brutais, levaram as memórias do resto.

Mas éramos miúdos e era uma aventura. Das a sério. Foi, assim visto de longe, bestial. Ok, um horror, sim, mas bestial. Ainda bem que vivi isso tudo, somos uns sortudos e depois deixámos a democracia cos porcos, tornámo-nos uns egoístas de merda e agora dizemos mal de tudo. É assim que se desperdiçam boas oportunidades. Mas dizemos mal de tudo. Podemos. É isso.

7 thoughts on “Onde é que eu estava no 24 e no 25 de Abril?

  1. emiele

    Olá Cat!
    Nem de propósito, escolhi hoje para responder a essa pergunta um tanto traiçoeira, porque se muita gente sabe e se lembra do 25, muito poucos se lembram da véspera. Por acaso, devo ser das poucas que, por motivos pessoais, me lembro! e até muito bem :)
    É nestas coisas que se vê a diferença de idades, não é?
    Mas, se nunca estive em Angola para compensar por essa tua idade estava em Moçambique! Era indescritível a sensação de liberdade que a vida em Lourenço marques transmitia – a praia logo ali, ia-se de bicicleta (de ‘burra’) para o liceu, todos nos conhecíamos…
    ………….
    E também me parece que dizemos hoje mal de tudo, por princípio. Antes até de se examinar e ver o que se passa já estamos a criticar. Que raio de feitio o nosso, bolas!

  2. emiele

    :(
    Ups! Reli o meu comentário e faltam tantas vírgulas que quase altera o sentido. Espero a bo vontade de quem lê para as colocar.
    (é que é muito cedo, vim aqui num pulinho, interessada por ser o mesmo tema que tinha acabado de escrever)

  3. Vítor I

    Tinha 8 anos e tava na escola, depois no dia 25 fiquei em casa (fixe!).
    Lembro-me dos meus pais estarem a ouvir na rádio a reportagem do cerco ao Quartel do Carmo (read my blog), perguntei à minha mãe o que se passava, disse-me ela:
    – O Marcelo não quer largar o poder.
    Muito intrigado perguntei porquê.
    – Porque pra ele é bom”.
    Ao que eu concluí:
    – Então isso do poder é como os chocolates?
    – ?!
    – É tão bom que a gente não quer dar a mais ninguém!

    Por falar no assunto, só agora li com atenção a Cronologia da Revolução, apesar de detalhada é bastante concisa.

    Outra coisa, a falar do 25 de Abril no dia 29?! Francamente Cat! Existem assuntos da actualidade mais suín, perdão, mais candentes.

    Inda outra coisa, quando um amigo ou colega espirrava costumava eu dizer “santurso!”, agora digo “suíno!” que é uma espécie de contracção de “santinho”

  4. JACINTA

    Vim aqui espreitar por acaso, quando andava à procura de imagens de Moçambique, em mais uma das minhas nostalgias de Africa!
    E no 24 ou 25 de Abril…? Se era dia de semana, penso que estaria no Liceu D.Ana da Costa Portugal, ou a descer as barreiras ou a espreitar pela milionésima vez o Museu Machado de Castro,ou se era sábado no Centro Hipico de LM e se fosse Domingo, na entrada da Igreja da Polana a conversar com os meus amigos, não sei mas a liberdade teria certamente outras conotaçoes!

  5. duende

    O meu aqui no continente que não nas colónias não foi muito diferente. Um dia conto em pormenor. Uma coisa foi importante: cancelaram as aulas e o grito colectivo de júbilo deve ter chegado ao céu dos alunos. :)))

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